Aspectos da restrição de uma definição científica de hipnose

Quando alguém pergunta o que é hipnose a um hipnotista, prontamente recebe uma definição de hipnose proferida em tom de segurança.

Diversas correntes fornecem inúmeras descrições do termo. Que podem até se contradizerem.

Qual é a definição de hipnose?

Basicamente, isso acontece porque:

  • A palavra hipnose é empregada para referenciar procedimentos ou rituais dos mais diversos;
  • Diferentes pressupostos ou arcabouços teóricos sustentam as explicações dos fenômenos hipnóticos;
  • Os produtos hipnóticos correspondem a processos neurofisiológicos radicalmente distintos.

No senso comum, aceitamos definições muito diversas.

Elas vão desde “hipnose é toda a comunicação bem sucedida”. Passam por “é foco e imaginação”. Chegam a exposições articuladas contendo todos os passos necessários, como rapport, pré-talk, indução, imersão, etc

Outro fator que influencia a resposta é o contexto da discussão. No pré-talk, hipnotistas costumam até mentir sobre a hipnose.

Já em âmbito científico, como veremos a seguir, se faz necessário articular teses mais restritivas e prudentes.

Aceitar inúmeras definições de hipnose em diferentes contextos não significa que todas possam ser usadas em qualquer situação.

Para nos auxiliar nesse problema, a filosofia pode nos ajudar! Daremos um passo atrás para entender o que significa definir.

O que é uma definição?

Desde o período clássico, filósofos se interessam por definições.

Como exemplo, Platão inicia “A República” com um debate protagonizado por Sócrates buscando definir o conceito de justiça. O assunto vislumbrou seu auge após a virada linguística, com o florescimento do método analítico.

É importante pontuar que sabemos que as mais diversas coisas podem ser objetos de definições. Do mesmo modo, os processos utilizados para definir também variam de acordo com a necessidade.

As próximas linhas apresentam alguns tipos de definições e suas aplicações debatidas na história da filosofia.

Definições reais e nominais

John Locke, em “Ensaio Acerca do Entendimento Humano” (1690), distingue essência real ー a estrutura real do objeto ー de essência nominal ー a ideia abstrata à qual a palavra é anexada.

Essas categorias nos ajudam a entender a diferença entre os tipos de definições.

Ao passo em que a nominal pretende apresentar uma visão mais clara dos usos da palavra, a real visa dar conta de explicar um objeto, independente de seus usos.

O químico mira uma definição real, enquanto o lexicógrafo uma definição nominal.

Definições de dicionário

Definições de dicionário são um tipo de definição nominal.

Um dicionário provê definições contendo informação suficiente para transmitir um entendimento do termo.

De algum modo, falantes de uma determinada linguagem conseguem compreender e utilizar potencialmente uma palavra em um número infinito de sentenças. Mesmo tendo sido apresentado a uma pequena quantia de informações sobre o termo.

A explicação do significado que um dicionário dá geralmente não é acompanhada das necessidades de investigação filosóficas do termo.

Definições estipulativas

Uma definição estipulativa transmite um significado ao termo definido.

Este tipo não envolve o comprometimento de que a atribuição de significado concorde com usos anteriores do termo.

De certa forma, esta nominalização também ocorre enquanto James Braid atribui a palavra hipnose ao estado de aparente sono artificial estudado por ele.

A relação entre a palavra e o significado proposto é meramente contingente. Isto é, não é necessária.

Hipnose poderia não ser o estado proposto, mesmo que a descrição do estado existisse e fosse correta.

A discussão sobre este tipo de definição é objeto de grandes filósofos matemáticos do século passado, como Frege e Kripke.

Definições descritivas

Na filosofia, definições descritivas, assim como as estipulativas, esclarecem significados. Mas estas também se preocupam com os usos anteriores das palavras.

Por exemplo, quando filósofos definem “justiça” ou “liberdade”, deste modo, a palavra deve se relacionar com uma boa descrição do termo. E ainda se adequar a seus usos prévios.

Definição de hipnose

E como essas descrições de definições podem nos ajudar?

Agora que já percebemos que definições precisam se ajustar ao seus fins, e pontuamos algumas diferenças entre alguns de seus tipos, voltamos a investigar a palavra “hipnose”.

Já que tantas definições são possíveis em tantos contextos, como a ciência poderia investigar a hipnose?

Hipnose demanda que tipo de definição para ser estudada cientificamente?

O âmbito científico tende sempre a um ponto de vista mais objetivo.

Deste modo, a natureza subjetiva de muito dos fenômenos hipnóticos já apresentam, de cara, um grande desafio.

Mas é possível contornar estas dificuldades.

A seguir, exponho uma definição funcional apresentada por dois dos maiores pesquisadores acadêmicos sobre hipnose no mundo: Mike Nash e Amanda Barnier.

Nash e Barnier diferenciam três níveis de explanação:

  • Definição; 
  • Descrição; 
  • Teoria.

 

Uma definição é tratada como o ponto de partida. Como um rascunho, uma versão mais concisa da descrição.

Uma descrição, assim como a definição, identifica o objeto de interesse e suas características de modo detalhado.

Os autores apresentam uma analogia para explicar a distinção entre estes dois termos. A definição é o esboço. E uma descrição é o chiaroscuro completo (uma técnica de pintura renascentista para representar luz e sombra).

Teorias lidam com as causas do fenômeno.

Definição de hipnose
Exemplo de pintura chiaroscuro. The Matchmaker, por Gerrit van Honthorst.

Uma definição pragmática

Precisamos de uma definição pragmática, e não tendenciosa dos fenômenos hipnóticos.

O método científico procede através de uma descrição e termina numa análise teorética. Fornece, assim, um entendimento completo do objeto de estudo.

No entanto, tudo começa com uma definição.

Definições escassas, definições exageradas e seus reflexos na pesquisa científica

Uma definição pode ser tanto escassa (underdone) ou exagerada (overdone).

Quando escassa, a definição proporciona liberdade máxima.

Mas os pesquisadores ficam com poucos elementos em comum a discutir e a replicação metodológica geralmente ocorre apenas por coincidência.

Acima de tudo, a replicabilidade é essencial para o método científico.

Quando exagerada, a definição fornece um escopo comum bem articulado, mas pesquisadores acabam sendo obrigados a estreitarem o foco para a definição.

Portanto, a replicação é praticamente inevitável. E quase sempre desinteressante.

Barnier e Nash iniciam a construção da definição citando o esboço sobre hipnose, de Auke Tellegen (1978/1979).

A capacidade do indivíduo de representar eventos e estados sugeridos através da imaginação e o fazendo de uma maneira a serem experienciados como se fossem reais.

A partir desta definição, a dupla se preocupa em definir o que constitui uma situação hipnótica.

Precisamos fazer isso sem sacrificar muito dos aspectos fundamentais do termo. Neste caso, é necessário propor uma explanação sobre o conceito hipnose, levando em conta os usos prévios da palavra.

Definição de hipnose

Hipnose como procedimento e Hipnose como produto

Indiscutivelmente, existem dois elementos em uma situação hipnótica:

  • hipnose como procedimento;
  • hipnose como produto.

Apenas recentemente passamos a lidar com a palavra hipnose dessas duas maneiras.

Para demonstrar a necessidade desta distinção, analisemos a seguinte questão:

O que queremos dizer quando nos referimos a “o grupo hipnotizado”?

  • É um grupo de pessoas que q recebeu a administração de um procedimento hipnótico?
  • Ou é um grupo de pessoas que está em um estado hipnótico?

Claramente, os dois sentidos não são iguais. Nós precisamos definir de forma concisa o que é um procedimento hipnótico no estudo da hipnose.

Sabemos que a administração de um procedimento hipnótico não resulta necessariamente no produto da hipnose sugerido.

Há pessoas pouco hipnotizáveis, sujeitos sem vontade… E vários outros tipos de fingidores que habitam laboratórios e consultórios.

Inicialmente, definimos a “situação hipnótica” partindo da hipnose enquanto procedimento. Então aplicamos critérios para determinar se podemos confiar que o resultado disso é a hipnose enquanto produto.

Estes critérios são geralmente indicativos de respostas:

  • Comportamentais;
  • Empíricos;
  • Fisiológicos.

Para explicar melhor, recorremos a outra analogia.

Pense nas anestesias médicas. Para certos tipos de cirurgias mais complexas, não é o suficiente saber que vamos receber um procedimento de anestesia. Nós queremos saber (e confiar) que seremos anestesiados num sentido em que o produto disso será a inconsciência durante a cirurgia, por exemplo.

Esperamos que nosso anestesista também esteja tão interessado na anestesia como produto quanto nós estamos!

Hipnose enquanto procedimento

A divisão 30 da APA (Associação Americana de Psicologia) descreveu dois componentes necessários em um procedimento hipnótico:

A hipnose tipicamente envolve uma introdução para o procedimento.

É informado ao sujeito que sugestões para experiências envolvendo a imaginação serão apresentadas.

A indução hipnótica é uma sugestão inicial estendida para que ele (o sujeito) use a imaginação e pode conter aspectos adiantados da introdução.

Um procedimento hipnótico é utilizado para encorajar e avaliar respostas às sugestões.

Durante a hipnose, uma pessoa (o sujeito) é guiada por outra (o hipnotista) a responder a sugestões para mudanças em sua experiência subjetiva, alterações nas percepções, sensações, emoções, pensamentos ou comportamentos.

Os pesquisadores consideram que um procedimento é hipnótico se contiver estes dois componentes necessários (e juntos, suficientes):

  1. Introdução: O responsável em administrar o procedimento conta para o sujeito que os eventos seguintes envolvem sugestões para experiências com a imaginação. Esta introdução pode ser tão simples quanto “Eu vou pedir pra você imaginar algumas mudanças na maneira que você pensa e sente. Tudo bem? Vamos ver o que acontece”. Esta introdução então distingue a situação hipnótica de outras formas de sugestão as quais não envolvem esse tipo de participação pelo sujeito. Como por exemplo, placebos, ilusões e influências sociais.
  2. A primeira sugestão: a definição estipula que a primeira sugestão imaginativa seja administrada e opere como a indução. Este é um ponto extremamente importante. A indução é meramente a primeira sugestão após a introdução.

Como descrito anteriormente, a definição da APA não requer a recitação de um ritual de indução em especial.

Em nossos protocolos padronizados, a primeira sugestão é geralmente uma sugestão que pode conter (ou não) elementos de caráter introdutório. Relaxamento não é necessário.

A definição da APA também não requer que a palavra hipnose seja usada no decorrer do procedimento.

Por que a definição de hipnose enquanto procedimento é importante?

Assim como a manualização é agora um padrão na pesquisa de psicoterapias, definir o que entendemos por hipnose enquanto procedimento é essencial, porque quando definimos o que é um procedimento hipnótico (e o que não é), influenciamos, e restringimos, em certo grau, nossas metodologias.

Por sua vez, nossas metodologias influenciam nossas teorias. É por isso que a definição da divisão 30, e outras como ela, são tão fundamentais para uma disciplina que deseja se manter relevante.

Pesquisas científicas não são produzidas em uma única cidade, mas são produzidas em comunidade, restringir devidamente o que aceitamos por ‘hipnose’ é indispensável para que nossas pesquisas rendam bons frutos em conjunto.

Conclusão: pelo menos dois sentidos de hipnose

A distinção científica entre hipnose enquanto produto e hipnose enquanto procedimento nos auxilia em discussões cotidianas acerca da hipnose.

Nos permite situar conceitos em diferentes níveis, como por exemplo, encarar o transe enquanto um produto da hipnose. Ou diferenciá-la de outros fenômenos como a persuasão.

Fontes:

 

Hipnose clínica: como funciona?