Podemos duvidar de muitas coisas no mundo. Mas existe um, e apenas um, fato do qual você pode certeza: você está em um estado de consciência.
Consciência é mais uma daquelas palavras que usamos diariamente, em vários sentidos, mas sem compreender sua natureza completamente.
É aquilo que perdemos quando atingimos o sono profundo (enquanto não estamos sonhando) e retorna, todos os dias, no momento em que acordamos.
A consciência nos acompanha nesse filme da nossa vida que se passa em primeira pessoa. Com imagens, sons, perfumes, dores, afetos e todas as sensações possivelmente sensíveis.
Abordamos neste artigo:
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De que é feita a consciência?
Dualismo de substância mente-corpo
Tradicionalmente, esta questão remonta às ideias do filósofo René Descartes.
Segundo ele, existem no mundo dois tipos de substância: a material e a mental.
Sua tese é que a nossa mente (imaterial e infinita) governa o nosso corpo. Este, por sua vez, a abastece com informações acerca do mundo externo.
O raciocínio intuitivamente lógico e caracteristicamente organizado de Descartes o levou a conclusão de que a mente deve ser uma coisa una. Que não é dividida.
Portanto, deve haver algum ponto específico no corpo humano em que a interação entre ele e a substância mental ocorre.
Em “As Paixões da Alma”, Descartes apresenta uma elaborada descrição do funcionamento do corpo humano. Ele enfatiza o papel do sangue e do cérebro com as interações mentais e aponta especificamente a glândula pineal — local que não é dividido em dois hemisférios — como o ponto de comunicação entre a mente e a matéria.
Este tipo de teoria conhecida como dualismo de substância mente-corpo ainda ocupa um enorme papel nas mais diversas sociedades contemporâneas.
Muitas religiões empregam noções dualistas da mente, como espírito, alma… Ou qualquer outro tipo de substância que não seja física.
A interação mente-corpo
No entanto, o dualismo de substância enfrenta um enorme desafio que o deixa fora de qualquer linha de pesquisa científica:
- explicar como ocorre a interação entre a mente e o corpo.
Como poderia algo não material pensar “Vou levantar meu braço agora”, e que o produto disso fosse seu braço “corpóreo” se levantando?
Eventos materiais devem possuir causas materiais. Como algo não material poderia interferir na matéria?
Até hoje não há uma resposta para esta pergunta. E a ciência atual descarta que tal possibilidade possa fundamentar seus objetos de estudo.
Os gregos antigos acreditavam que nossos corações abrigavam a consciência. Ideia que até hoje persiste em nossas metáforas. Mas sabemos que ela emerge do funcionamento do cérebro.
Embora muitos tenham buscado a região cerebral responsável pela existência da consciência, as recentes pesquisas da neurofisiologia indicam que a consciência não se dá em uma parte específica do cérebro.
E embora a região mais externa do córtex aparentemente seja essencial para sua realização, não significa que seja suficiente. Sua origem é um mistério.
Estudiosos por todo o mundo buscam a resposta em pesquisas de diversos níveis e nichos, utilizando a matemática pura, mecânica quântica, com simulações na ciência da computação, na biologia… Enfim!
As pesquisas sobre consciência ocorrem em contextos multidisciplinares.
A consciência fenomênica
O que Mary não sabia
Frank Jackson é o autor do experimento mental chamado “O que Mary não sabia”.
Nesse experimento, Mary era uma cientista que vivia em um quarto preto e branco. Entretanto, sabia tudo o que se podia saber sobre a física das cores. Sobre a luz, os comprimentos de onda, sobre química e neurofisiologia, sobre como a informação era processada pelo cérebro e tudo mais que fosse possível conhecer sobre cores, objetivamente.
Certo dia, Mary sai do quarto e se depara com um tomate. Apesar de saber tudo sobre as cores, naquele momento Mary aprendeu como era ter a experiência de ver o vermelho.
Esta qualidade da cor, a “vermelhidão do vermelho” que Mary experienciou ao ver o tomate é tipicamente chamada de quale (qualia, no plural).
Os qualia são as qualidades das experiências, de um ponto de vista de primeira pessoa. São as sensações brutas de todas as experiências subjetivas e privadas, impossíveis de descrever através da linguagem. Coisas como sabores, dores ou como sentimos nossas emoções.
Não experienciamos os qualia separadamente. Enquanto você lê este texto, é provável que esteja percebendo algum som, vendo cores, ou até sentindo um tipo de alegria ou tristeza. E tudo isso ocorre em conjunto.
Todos estes fenômenos qualitativos, a partir de um ponto de vista subjetivo, compõem o que chamamos de consciência fenomênica, ou simplesmente experiência.
Como é ser…
Outra maneira usual para se referir à consciência fenomênica é a expressão como é ser… [alguém]. Vem do inglês what is like to be…
Tal termo ficou famoso pelo artigo de Thomas Nagel, “Como é ser um morcego” (“What is like to be a bat”).
Seu argumento se baseia em um experimento mental no qual o autor infere que, já que sabemos como é ser um ser humano. Então, provavelmente, exista algo tal como “é ser um morcego”. Uma vez que esse animal é um mamífero relativamente próximos dos humanos na evolução.
Mas que nunca saberemos, de fato, como são as qualidades das experiências de um morcego. Eles são cegos e se orientam por uma espécie de sonar. Possuem um aparato fisiológico diferente do humano.
Por mais que possamos ser criativos, jamais teremos uma ideia fiel dos qualia dos morcegos.
Materialismo reducionista
Estes dois artigos são famosos por contra-argumentar uma das teses mais fortes dos estudiosos da mente humana: o materialismo reducionista.
Esta teoria afirma que podemos explicar todos os fenômenos mentais explicando os eventos físicos do cérebro e suas causas.
Uma teoria materialista completa e correta deve dar conta de reduzir todos os aspectos mentais. Não obstante, mesmo que Mary soubesse de toda a física das cores, e mesmo que nós consigamos aprender tudo sobre a neurofisiologia dos morcegos, algo importante a respeito da consciência é deixado para trás. A própria experiência subjetiva.
David Chalmers, filósofo australiano, divide as questões da consciência em dois tipos.
- Os problemas fáceis. Que gradativamente estamos resolvendo, e que consistem em correlacionar comportamentos a processos em áreas específicas do cérebro;
- E o problema difícil: como explicar esta narrativa em primeira pessoa (a consciência fenomênica)?
Ele afirma que a neurociência não conseguirá resolvê-lo sozinha, já que trata de um domínio puramente objetivo. Mas que será essencial para sua compreensão.
Alguns filósofos, como Daniel Dennett, em “Consciousness Explained”. Afirmam que a consciência fenomênica não passa de uma simples ilusão.
Que o que existe são processos concorrentes no cérebro e que, mesmo que a ciência não explique com clareza a natureza dos qualia, conseguirá tratar de tudo o que é importante para a discussão.
Consciência reflexiva ou psicológica de ordem superior
Habilidade linguística
Frequentemente nos referimos à consciência em sentidos diferentes deste da experiência. Como por exemplo, quando falamos da autoconsciência. Isto é, ter a consciência de estar consciente.
Teorias como a ontogenética ou efeito Baldwin afirmam que, na evolução da nossa espécie, a consciência reflexiva desenvolveu-se conjuntamente com nossas habilidades linguísticas. Culminando na nossa capacidade consciente de imaginação e de raciocínio analítico.
Em um nível mais baixo, a consciência reflexiva requer uma capacidade semântica (associar significado a um símbolo).
Porém, os humanos apresentam, além da semântica, habilidades sintáticas necessárias para a concepção de linguagens “de verdade” (regras de produção que permitem combinar os símbolos).
Deste ponto de vista, é possível conceder que alguns primatas possuam este tipo de consciência em certo grau. Já que existem casos de demonstração de habilidades semânticas.
Passado e futuro
A consciência reflexiva também nos permite reconstruir experiências do passado e imaginar cenários futuros.
Relacionamos estes fenômenos com o funcionamento do hipocampo, região essencial para a memória episódica.
Mesmo que ainda não tenha sido comprovado, tudo indica que a ausência dessa região no cérebro de um indivíduo impossibilitaria o desenvolvimento de habilidades semânticas. O que resultaria na privação deste tipo de consciência.
A autoconsciência
Durante o desenvolvimento de um ser humano, nossas habilidades linguísticas e capacidades imaginativas expandem-se enormemente, em conjunto com o amadurecimento de nosso sistema neurofisiológico.
Este processo é acompanhado da construção da noção do eu e da autoconsciência. Desse modo, vamos nos descobrimos enquanto indivíduos com necessidades e desejos.
Da autoconsciência, emerge a consciência moral, ao compreendermos que estamos em meio a outras pessoas tais como nós. E assim, passamos a ponderar as necessidades e afetos de indivíduos próximos.
Fonte:
- Chalmers. The metaproblem of consciousness.
- Damasio. O livro da consciência.
- Dennett. Consciousness explained.
- Descartes. As paixões da alma.
-
Edelman. Wider than the sky.
-
Jackson. What Mary didn’t know.
- Nagel. Como é ser um morcego.